Entender o papel de cada instituição/ator é quase tão fundamental quanto aceitar a interdependência entre eles na formação dos i-ecossistemas.

 

“Nunca duvide que um pequeno grupo de pessoas conscientes e engajadas possa mudar o mundo. De fato, sempre foi assim que o mundo mudou”. Embora a frase da antropóloga norte-americana Margaret Mead tenha sido dita em outro contexto, ela se encaixa perfeitamente ao desafio de construção de ecossistemas de inovação.

Na coluna anterior falamos do desafio de unir “corações e mentes” dos cinco atores-chave necessários para a formação de um i-ecossistema: Universidades, Governos, Corporações, Empreendedores e Investidores de Risco. Nesta segunda parte falaremos especificamente do papel de cada um deles e de como isso se encaixa no contexto da transição energética e na construção de um Vale do Silício da energia.

 

O papel do governo

 

A resposta mais comum quando se tenta imaginar um único responsável pela condução de uma mudança estrutural de rumos é o governo. No Brasil, esse pensamento é ainda mais recorrente. Entretanto, Torger Reve, professor da BI Norwegian Business School, afirma que algumas vezes esse excesso de protagonismo dos governos e de suas políticas públicas pode, inclusive, prejudicar o desenvolvimento de i-ecossistemas saudáveis.

Isso decorre primordialmente por dois fatores. O primeiro é a criação de uma dependência financeira das ações governamentais (que dependem da geração de riqueza privada subsequente para se retroalimentar). Ações e recursos governamentais são fundamentais para estimular a inovação, principalmente em suas fases iniciais, mas o excesso delas, ou a falta de um plano de substituição gradual, podem gerar efeitos adversos para a região. Uma espécie de “doença holandesa” da inovação.

O segundo é a falta de senso de pertencimento. Ao imaginar que existe uma liderança do governo e que ele vai providenciar todas as soluções, os demais atores desta penta-hélice se engajam menos e os resultados almejados não são alcançados. Em seu livro Boulevard of Broken Dream, o professor Josh Lerner, da Harvard Business School, descreve uma série de armadilhas comuns das iniciativas que acreditam que o governo, sozinho, pode resolver os problemas da falta de empreendedorismo e inovação de uma região.

Em um i-ecossistema bem-sucedido o governo deve atuar como um facilitador dentro de sua região. Deve atuar para gerar consensos sobre legislações e regulamentações que sejam favoráveis à inovação e ao empreendedorismo; deve prover recursos financeiros para as etapas de maior risco ou que ainda não estejam maduras suficientes para atrair o setor privado; deve articular atores em torno de objetivos e políticas comuns; e deve financiar bases de dados e estudos para apoiar tomadas de decisão, principalmente de investidores. O governo não deve atuar como o líder único de um processo de transformação regional, mas inquestionavelmente possui um papel crítico para que isso aconteça.

No setor de energia especificamente essas constatações são ainda mais relevantes considerando que o setor é altamente regulado e questões ambientais são críticas. O modelo de concessões, direitos de exploração, limitações legais e regulatórias são fundamentais para habilitar (ou cercear) novos modelos de negócios e alavancar aplicações de novas tecnologias. Um exemplo disso é o recente Marco Legal das Startups e Empreendedorismo Inovador (Lei Complementar nº 182, de 1º de junho de 2021) que abre a possibilidade de aplicação de recursos regulados de P&D (ANEEL e ANP) em startups. Essa mudança habilitará investimentos relevantes nos próximos anos em startups ligadas ao setor de energia, o que trará um diferencial competitivo de escala global para startups de energia instaladas no Brasil.

 

O papel das universidades

 

Podemos dizer que o fator gerador de riqueza preponderante no mundo, pelo menos até a Idade Média, era a terra. De modo similar, os séculos XIX e XX (até a primeira metade) foram predominantemente dominados pelo capital industrial, puxado em grande parte pelas mudanças nas fontes de energia: primeiro carvão e depois petróleo e gás. No mundo atual, restam poucas dúvidas de que a maior parte da riqueza e do valor agregado gerado pela humanidade é oriunda do conhecimento. Com exceção da Saudi Aramco, todas as atuais empresas listadas entre as dez mais valiosas do mundo possuem mais valor pelos seus ativos de conhecimento do que pelos seus ativos físicos.

E o que isso tem a ver com as universidades e seu papel na formação de i-ecossistemas? As universidades ainda são hoje os grandes polos de geração e estruturação de conhecimentos complexos em praticamente todas as áreas — o que não é diferente no setor de energia. O Facebook, por exemplo foi criado como uma rede social universitária por quatro alunos de Ciência da Computação de Harvard: Mark Zuckerberg, Eduardo Saverin, Dustin Moskovitz e Chris Hughes. Já o Google foi concebido originalmente como um projeto de pesquisa de Doutorado dos estudantes Larry Page e Sergey Brin, da Universidade de Stanford.

Esses dois exemplos emblemáticos são apenas a ponta do iceberg do papel da universidade na geração do conhecimento de ponta e na transformação destes conhecimentos em negócios inovadores. Em 2015, o MIT fez um levantamento sobre suas empresas-filhas e os números encontrados foram bastante impactantes. Ao todos foram mapeadas cerca de 30.000 empresas-filhas que, conjuntamente, geravam 4,6 milhões de empregos e possuíam receitas anuais de US$ 1,9 trilhões, o equivalente ao PIB da 9ª maior economia do mundo na época e maior que o PIB atual do Brasil.

Em um i-ecossistema pujante, as universidades desempenham alguns papéis críticos como formar pessoas qualificadas para as demais pontas, transferir para o mercado tecnologias geradas em seus laboratórios e acelerar o processo de criação e desenvolvimento de startups. Em um período chamado de a era do conhecimento, seu templo maior, as universidades, definitivamente não podem ser ignoradas do processo de criação e consolidação de i-ecossistemas.

O setor de energia, por sua vez, possui uma relação ainda mais relevante com as universidades. O desenvolvimento tecnológico do setor demanda conhecimentos complexos, muitas vezes multidisciplinares e que demandam grandes volumes de investimento em infraestrutura laboratorial, máquinas e equipamentos. Ao contrário dos aplicativos de internet, muitos dos desenvolvimentos do setor de energia envolvem investimentos relevantes e que não podem ser fracionados, como muitas vezes são os produtos mínimos viáveis (MVPs) das startups 100% digitais. Os “MVPs” do setor de energia, como no caso dos avanços em fusão nuclear, muitas vezes demandam investimentos de centenas de milhões de dólares ao longo de muito tempo, algo inviável para o tradicional modelo de financiamento do conhecimento via Venture Capital e bem mais compatível com o modelo de funding da ciência nas universidades.

 

O papel das corporações

 

Segundo a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), 80% do comércio global estão ligados às cadeias de valor das grandes corporações multinacionais. Deste ponto de partida já é possível imaginar uma das principais razões da necessidade de considerar as corporações como agentes fundamentais para formação de i-ecossistemas: sua demanda.

No setor de energia, tanto as cadeias de exploração, produção, distribuição e derivados em petróleo, quanto as cadeias de geração transmissão e distribuição no setor elétrico são substancialmente densas e um locus relevante para inovações. Com poder de compra bastante relevante, as grandes corporações do setor de energia exercem muitas vezes os papéis de direcionador dos esforços de pesquisa e desenvolvimento, de financiador dos esforços inovativos de outros elos da cadeia, e de consolidador das demandas do mercado.

Outro aspecto importante relativo às corporações na formação de i-ecossistemas é sua visão estratégica de longo prazo. Ao tratar de programas orientados a missões que envolvem tecnologias e combinações complexas de diferentes instituições por um prazo longo, como os projetos Apollo (levar o homem à lua) ou Manhattan (desenvolver a bomba-atômica), os pesquisadores Cantner e Pyka concluíram que os arranjos que mais funcionavam eram preferencialmente liderados por grandes empresas. O motivo? São instituições menos vulneráveis a mudanças de ciclos políticos (ao contrário dos governos), que possuem capacidade de realizar investimentos vultuosos e de longo-prazo (ao contrário das startups) e que são capazes de dar escala à difusão de tecnologias através de sua capacidade produtiva e rede de distribuição (ao contrário das universidades).

Esses pontos já seriam fundamentais para considerar a relevância das corporações na transição energética e na formação de i-ecossistemas. Entretanto, um outro fenômeno que começou se consolidar no início dos anos 2000 tornou as corporações ainda mais importantes nesse contexto: a inovação aberta. Cunhado pelo professor Henry Chesbrough da Haas School of Business da Universidade da Califórnia, em Berkeley (UC Berkeley), o termo trouxe às grandes empresas uma nova maneira de ver o processo de inovar. Os antigos preceitos de que os processos de pesquisa, desenvolvimento e inovação deveriam ser feitos em centros fechados, com segredos escondidos a sete chaves foram gradativamente sendo substituídos por uma abordagem mais colaborativa e aberta devido às suas evidentes vantagens em um mundo cada vez mais conectado.

Através desse “novo mainstream” na gestão da inovação, as grandes corporações expandiram suas cooperações com universidades e governos e passaram a colaborar e investir em startups, resultando na 5ª onda de Corporate Venture Capital (CVCs), cujo volume de investimentos já é quatro vezes maior do que o pico alcançado pelos ciclos anteriores. Segundo a CBInsights, em 2020, os fundos de CVC corresponderam a 24% de todos os investimentos em Venture Capital feitos no mundo, tendo o seu volume mais que dobrado nos últimos 4 anos (de US$ 32,9 bilhões em 2016 para US$ 73,1 em 2020). Atualmente 77% das corporações da lista Fortune 100 realizam investimentos em startups através de unidades dedicadas exclusivamente a esta atividade.

Em um i-ecossistema funcional, as corporações possuem o fundamental papel de direcionar investimentos de longo prazo, de prover e articular conhecimentos setoriais e conectar as outras pontas em torno de seus investimentos e ações estratégicas, desempenhando um papel crítico neste processo. No contexto das perspectivas de mudança e incertezas da transição energética em curso, essa capacidade de enxergar e executar mirando o longo-prazo é fundamental. Embora a tendência do setor seja continuar CAPEX-intensivo os papéis das corporações tenderão a mudar gradativamente. Novos entrantes, como as próprias Big Techs chegarão, empresas da cadeia de petróleo e gás precisarão se reposicionar e as grandes empresas do setor elétrico terão que rever seus modelos de negócios. Tudo isso de maneira exponencial nos próximos anos, como a própria Tesla tem mostrado ser possível no setor automotivo.

 

O papel dos investidores de risco

 

Os papeis das universidades, governos e corporações, em maior ou menor grau, já eram considerados como fundamentais para o desenvolvimento econômico e social via inovação. Eles eram a base do modelo da hélice tríplice desenvolvido pelas pesquisas de Henry Etzkowitz. No modelo proposto pelo MIT, além deles, mais dois atores surgem como instituições relevantes para esse desenvolvimento: os investidores de risco e os empreendedores/startups.

O crescimento da importância dos investidores de risco começa a ficar mais evidente a partir dos anos 1990 com o fenômeno da globalização, que gerou uma redução substancial dos custos de transporte e comunicação. Essa redução, por sua vez, gerou uma externalidade muito sentida, mas pouco comentada, que foi uma massiva difusão do conhecimento – que era restrito a poucos privilegiados – para um número cada vez maior de pessoas. Com a Internet, por exemplo, é possível aprender, em minutos, receitas de chefs renomados, estudar online nas melhores universidades do mundo ou seguir as ideias de grandes pensadores nas redes sociais.

Porém, se por um lado o conhecimento se tornou mais disponível, a capacidade de investimento para transformar novas ideias em negócios ainda permanecia concentrada. E foi neste momento que os gestores pioneiros de fundos de capital de risco se mostraram fundamentais para fazer com que investidores com apetite ao risco encontrassem empreendedores com boas ideias e capacidade de execução. Esse encontro foi o combustível e o catalizador que faltavam para a explosão de surgimento e de crescimento das startups que mudaram nosso mundo nos últimos 20 a 30 anos.

Em um estudo liderado pelo professor Ufuk Akcigit da Universidade de Chicago, foi constatado que as empresas investidas por fundos de VC aumentam seu número de empregados, em média, em 475% ao longo de 10 anos, mais do que o dobro da média das empresas que não são investidas por esses fundos. Esse mesmo estudo também concluiu que a economia americana teria crescido 28% menos nos últimos anos se não houvessem as atividades dos fundos de VC. Um levantamento realizado pela National Venture Capital Association apontava que 556 empresas “VC-backed” fizeram IPO entre 1974 e 2015, 42% do total do período. Ao mesmo tempo elas correspondiam por 85% dos investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) e 63% do valor de mercado, incluindo as cinco maiores empresas americanas naquele ano (2015): Apple, Microsoft, Alphabet/Google, Amazon e Facebook.

Em um i-ecossistema estruturado os investidores de risco são fundamentais para mapear e viabilizar tendências (ao analisarem diversas propostas de investimento, conseguem ter uma privilegiada visão sobre mudanças setoriais disruptivas) e são fundamentais para conectar boas ideias e tecnologias com o capital necessário para transformá-las em negócios inovadores bem-sucedidos.

Essa importância do Venture Capital para o crescimento de startups e transformação de setores via inovação, entretanto, ainda não é tão sentida no setor de energia. Pode-se dizer que os fundos de VC encontraram modelos sustentáveis tanto para os curtos ciclos das empresas de tecnologia da informação, como para os longos ciclos da indústria farmacêutica, que chegam a levar 10 anos da descoberta de uma nova molécula até sua chegada ao mercado. Entretanto, segundo Gaddy et al., esses fundos ainda não encontraram um caminho consistente e que viabilize o crescimento com retornos sustentáveis para as empresas de cleantech (em grande parte ligadas a energias renováveis e eficiência energética). Este desafio é também uma grande oportunidade, principalmente considerando o surgimento e o crescimento dos fundos de Corporate Venture Capital das empresas do setor, assim como alguns modelos interessantes de Corporate Venture Builders.

 

O papel dos empreendedores

 

Por último, e não menos importante, é impossível falar de empreendedorismo e inovação sem falar da importância dos empreendedores e suas startups. Embora o economista Joseph Schumpeter já falasse do papel fundamental dos empreendedores como motor do desenvolvimento econômico desde o início do século XX, somente a partir do final dos anos 1990 e início dos anos 2000 que essa máxima se tornou evidente para a maior parte das pessoas. Isso aconteceu, pois, a união das tecnologias da informação e comunicação (incluindo a Internet) com os modelos de capital de risco permitiu a criação de um sistema de financiamento onde empreendedores podiam escalar rapidamente seus negócios inovadores mesmo não sendo capazes de gerar caixa para suportar essa expansão acelerada. O resultado disso foi o boom das startups que mudaram o mundo em que vivemos. Nada menos que 6 das 10 empresas mais valiosas do mundo em capitalização de mercado foram fundadas naquele breve período de 10 anos: Amazon (1994), Google (1998), Tencent (1998), Alibaba (1999), Tesla (2003) e Facebook (2004).

Em termos de gestão, certamente a ponta empreendedores é uma das mais “diferentes” no processo de formação orquestrada de i-ecossistemas pois sua quantidade é indiscutivelmente maior do que as demais. Olhando para o Brasil, por exemplo, temos quase 14 mil startups e, nem de longe, temos dezenas de milhares de grandes corporações, ou universidades, ou instituições governamentais de apoio a inovação ou mesmo fundos de investimento em VC. Esse fato torna bastante desafiador coordenar e alinhar os propósitos desta ponta em torno do desenvolvimento de uma região ou de um setor. Como falado anteriormente, desenvolver o empreendedorismo em um i-ecossistema vai muito além do papel dos empreendedores em si. Porém, certamente eles estão entre os mais importantes atores do processo inovativo. Ignorar suas demandas é o mesmo que ignorar a importância do motor em um automóvel.

Em um i-ecossistema pujante, empreendedores bem-sucedidos são fundamentais para “ensinar o caminho” aos novos candidatos, articular demandas comuns a esta grande massa, passar a experiência de quem está fazendo na prática aos formuladores de políticas públicas e, claro, continuar empreender e inovar, gerando emprego, renda e desenvolvimento econômico e social para a região em que está localizado.

No setor de energia especificamente, essa importância se expande ao constar que muitas startups buscam “desafiar” o status quo trazendo uma visão de fora do setor capaz de quebrar paradigmas pré-estabelecidos. Sem entrar na discussão das tecnologias e inovações em si, cabe aqui o destaque ao movimento de “unbundling” que as startups vêm fazendo em diversos setores. Este movimento consiste basicamente em decompor soluções baseadas em sistemas complexos em partes menores e oferecer soluções muito melhores e que possam ser facilmente integradas posteriormente. Esse movimento tem gerado economia de custos e melhorias de performance em diversos setores como tem mapeado a CBInsights, principalmente em segmentos de cadeias produtivas intensivas em capital como é o setor de energia. Em um setor em profunda transformação, as inovações disruptivas de algumas startups poderão (e deverão) mudar o jogo.

Todos são fundamentais na penta-hélice do i-ecossistema
Entender o papel de cada instituição/ator é quase tão fundamental quanto aceitar a interdependência entre eles na formação dos i-ecossistemas. Apesar da tentação, não se deve hierarquizar a importância. Em um time de futebol, não se faz comparações sobre a o nível de importância relativa dos atacantes ou do goleiro. Dificilmente um time, por melhor que seja, ganharia uma partida sem ter atacantes ou sem ter goleiro. É o trabalho colaborativo e com um objetivo comum que faz a diferença no final das contas. Na terceira e última coluna desta trilogia falaremos sobre a base teórica, exemplos de i-ecossistemas de sucesso (utilizando essa visão) e, finalmente, do projeto que construirá o “Vale do Silício” da energia e sustentabilidade no Brasil: o MIT REAP Rio de Janeiro. Até lá.

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Este artigo foi produzido por Hudson Mendonça, líder do Programa MIT REAP no Brasil, coordenador/pesquisador do LabrInTOS (o Laboratório de Inovação da COPPE/UFRJ), professor de Corporate Venture e Startups da FGV, e colunista da MIT Technology Review Brasil.

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